Um dia, a minha professora, que não era freira, e se chamava D. Magda, disse:
— Hoje, vocês, quando forem almoçar a casa, perguntem quem é que tem que fazer a admissão. Quem é que vai fazer a 4ª classe e quem é que vai continuar a estudar. Quem continuar a estudar, não precisa de fazer a 4ª classe, só faz a admissão e depois vai para o liceu. Quem não quiser continuar, tem que fazer a 4ª classe, porque precisa de ter um diplomazinho, para um dia que queira arranjar um emprego no Estado.
Lembro-me perfeitamente de ela dizer isto, o “emprego no Estado”. O nosso bichinho de querermos todos ser filhos de um Estado-Mãe já naquela altura existia… Eu não disse nada a ninguém, em casa. Naquela altura tinha 9 anos, ia fazer 10, mas não disse nada a ninguém. E, à tarde, quando chegou a minha vez de responder, dei por mim a dizer isto:
— Vou continuar a estudar.
E a professora, que sabia da minha situação económica, disse:
— Tu tens a certeza? Perguntaste ao teu pai?
— Tenho. Eu perguntei-lhe, e ele disse que eu era muito inteligente e que ia continuar a estudar.
Pronto. Estava feito. Lembro-me de que fui fazer a admissão em Janeiro, porque naquela altura o ano lectivo era diferente cá e lá. Sensatamente, por causa do clima. Nessa altura ainda morávamos na Sambizanga, que ficava muito longe do Liceu Nacional Salvador Correia, onde fui fazer a admissão. Tive que fazer um caminho enorme, de quilómetros, a pé, ao lusco-fusco já, sozinha, e tinha que passar pelo Cemitério do Alto das Cruzes, vulgarmente conhecido por Cemitério Velho, que tinha grades em vez de muros. Como tinha chovido e estava muito calor, havia fogos-fátuos, mas eu não sabia o que era e fiquei muito assustada. Via luzinhas muito ténues, com um tom azulado no meio, que vinham da terra e rapidamente se apagavam. Corri, corri, até chegar a casa sem fôlego e perdi o meu Bilhete de Identidade.
Tinha ido fazer exame de admissão ao liceu mas não disse nada disso aos meus pais! Disse que tinha ido fazer exame tout court. No dia seguinte, comecei a trabalhar na loja e a tomar conta do meu irmão mais novo que, entretanto, tinha nascido, em 1952. Fiz os 10 e os 11 anos e calei-me muito bem caladinha, não disse nada a ninguém, porque eu sabia, de alguma forma sentia, que não estava na altura de pedir para continuar a estudar. Tinha sido essa a intenção, porque eu tinha uma noção claríssima de que vivia num buraco e que só pela instrução conseguiria sair dele. Não sei como o sabia, mas sabia. Nunca tive dúvidas de que iria continuar a estudar.
Ao fim de dois anos, comecei a dizer:
— Oh pai, tenho que ir estudar, porque ….
— Tens que ir estudar porquê?
— Tenho que ir estudar, porque eu não fiz a 4ª classe, não tenho nenhum diploma, e um dia, se eu quiser arranjar um emprego, não posso.
— Mas, então, tu não andaste no colégio?!
— Oh pai, a professora disse que eu era muito inteligente e que eu tinha que estudar. Eu não fiz o exame da 4ª classe, fiz o exame de admissão ao liceu. Por isso é que foi preciso tirar o Bilhete de Identidade.
Andei dois anos a convencê-lo. Todos os dias falava nisso. Todos os dias dizia que não tinha diploma. Acho que ele acabou por me deixar ir para o liceu por puro cansaço. Eu já tinha então 13 anos, estava quase a fazer 14, quando fui para o 1º ano, no Liceu Feminino D. Guiomar de Lencastre, lá em cima, ao lado do Quartel-General. Portanto, estive três anos lectivos fora da escola, dois anos e meio, em termos cronológicos.
Fui estudar mas o meu pai pôs a seguinte condição:
— O teu trabalho ninguém o faz. Portanto, se quiseres ir estudar, vai, mas o teu trabalho ninguém o faz.
O que é que ele queria dizer com isto? Queria dizer que precisava do meu contributo para a economia familiar e, portanto, se eu queria estudar, tinha que me sair do corpo.
Bem, agora uma achega positiva: o meu pai precisava de papel para usar na loja e ele era muito caro. Então ele descobriu que se comprasse livros usados, ao quilo, lhe saía mais barato. E aí estava eu a aviar três tostões de massa de tomate em meia folha arrancada, digamos, de uma obra de Victor Hugo. Ou cinco tostões de açúcar numa folha de Aquilino Ribeiro. Algo se rasgava dentro de mim também, quando arrancava uma folha. E assim eu ia “roubando livros, que lia diante, à luz de um candeeiro de petróleo, pasme-se, debaixo de uma tenda que fazia com uma coberta. Escondia-os debaixo da cama e, à medida que ia lendo, voltavam a seguir o seu destino fatal. Lembro-me que tinha que ter cuidado para não fungar, especialmente com “A cabana do Pai Tomás”, “David Copperfield,” “ Oliver Twist”, “Os Miseráveis” e o “Amor de Perdição”, pois faziam-me chorar a alama.
Volta e meia o meu pai queixava-se de que os livros desapareciam. Pois. E eu calada, só me faltava assobiar para o lado… Mas foi assim que eu descobri que havia um outro mundo, onde era possível chegar através da Escola.
4 comentários:
Tem de escrever um livro com as suas memórias. Tem! Tem! Tem!
A professora "pinta com as palavras". É uma história comovente e linda. Sabe, a sua forca de vontade pode ser que a tenha por ter de lutar desde nòvinha.
As criancas que tem tido tudo servido num tabuleiro de prata, em adultas sao umas inúteis.
Repito, professora, a senhora tem de escrever um livro.
1. A professora escreve muito bem-
2. È uma boa história.
Eu digo-lhe isto, e sei o que estou a dizer, a professora é um talento.
Posso nao saber de mais nada, mas de literatura percebo eu.
Summa summarum: é um crime se perdermos um livro destes.
Boa noite, professora!
Querida Carmo:
Concordo... Fiquei curiosa de para saber o resto. O início da pessoa maravilhosa que é começa a desenhar-se na minha cabeça. Não deixe o desenho por terminar...
:)
Beijinho sentido e, claro, um abrço tribal apertado
Carmo, não sou muito de assinar por baixo, mas devo concordar inteiramente com o leitor supra.
Estas histórias de vida, são pérolas. Devem ser reunidas e editadas para as lermos na escola para as nossas crianças.
Avanço com um desafio. Eu ainda sou do tempo em que a palavra oral tinha valor... em que não se precisava passar para o papel os compromissos entre as pessoas... Aqui, estou num local público, a minha palavra vale pelo que escrevo e não posso desmenti-lo. E penso que não é preciso ir ao notário reconhecer assinatura. Todos me conhecem o suficiente. Ora aqui vai:
Carmo, reuna todas estas história da forma que bem sabe. Se nenhuma editora avançar com crédito, eu patrocino a 1ª edição do livro. Eu sei o que estou a escrever, a minha palavra não volta atrás.
Um abraço.
Nunca aqui deixei comentários. Venho a este blogue porque tenho uma grande admiração pelo Raul. Não tenho jeito para comentários. Apenas aprecio o que por aqui vai aparecendo. Mas hoje quero deixar o meu comentário porque fiquei muito impressionado pelo testemunho da Carmo na entrevista, nas respostas que deu aos alunos e neste pequeno texto autobiográfico. Venho incentivá-la a publicar um livro. Eu serei um leitor. E muitos gostarão de o ler. Parabéns.
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