Há textos que nos arrebatam e nos elevam; que nos fazem meditar e mexem com as nossas entranhas. Ontem, o meu bom amigo e colega André Sousa deu-me um desses textos. Belíssimo e profundo, do Médico e Professor Daniel Serrão. Sendo muito extenso, apenas vos deixo aqui pequeníssimos excertos do mesmo e convido-vos (se não for hoje que seja numa outra ocasião com mais tempo) a lê-lo na íntegra
aqui (clicar). Aqui ficam os pedacinhos do texto:
Diga-me,
quanto tempo me falta
para morrer?
Era um fim de tarde calmo, de Setembro, e eu estava naquele quarto, modesto, de casa de pescadores do Mindelo, olhando bem nos olhos aquela jovem e recebendo, em cheio, toda a força da pergunta:
diga-me, quanto tempo me falta para morrer?
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Não esperava esta pergunta, nem a serenidade com que foi feita. Apanhado de surpresa respondi assim:
- “Falta o tempo que tens para viver”.
E comecei a falar com palavras que me apareciam, vindas não sei de onde. E disse-lhe: “ a todos nós e não apenas a ti Maria C., o tempo que nos falta para morrer é o tempo que temos para nele viver, sem desperdiçar um segundo que seja. Não são as horas dos relógios mecânicos, nem é a sucessão dos dias e das noites, porque este planeta roda à volta da estrela que o ilumina, que fazem o nosso tempo, só o contam.
....
Este tempo vivido não tem que ver com o tempo dos relógios que tu, Maria C., querias que eu quantificasse para ti quando perguntaste – “diga-me, quanto tempo me falta para morrer?”
Desse tempo de relógios e da sucessão dos dias e das noites, quanto te falta, não sei. Mas sei que te falta, como a todos nós, usar o tempo de viver que é a criação nossa e tem, por isso, uma dimensão infinita.
Enquanto, na tua auto-consciência, te vês a dançar o Cisne vives o teu tempo da dança que não é o tempo físico da partitura. O Cisne desliza, eleva-se, rodopia e tomba, no tempo da memória visual que não é síncrono com o da representação real, em palco. O tempo vivido, como temporalidade, expande o tempo físico e amplia o espaço real dos acontecimentos percepcionados e memorizados. O palco em que danças Maria C. é um espaço imenso e o tempo que vives, dançando sobre ele, é quase infinito.
Mas nem só de dança viverá o teu tempo de viver.
Como ser vivo tens um lugar e um tempo no mundo natural. E o mundo natural é muito belo, muito rico e muito presente à nossa volta.
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Lembras-te Maria C., de quantas vezes olhaste “para o calor dos campos com a cara toda” (Pessoa) e te sentiste feliz, sem nenhum outro motivo para estares feliz além deste que era o de estares imersa na natureza como simples coisa natural?
Lembras, que eu sei. Pois lembra-te e vive, com intensidade, esses momentos mágicos de comunhão com o mundo real natural, em que o corpo não pesará e o espírito tomará conta de toda a tua auto-consciência enchendo-a de bem-estar de paz.
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DANIEL SERRÃO
In Cadernos de Bioética 42
Dezembro de 2006