sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

DA VIDA!

“A vida é volátil 
e obriga-nos a repensar constantemente 
os conceitos que damos por adquiridos.” 
(André Fernandes in Tia Guida p 84)

TEMPO DE VÉSPERAS!

Diga-me,
quanto tempo me falta
para morrer?Era um fim de tarde calmo, de Setembro, e eu estava naquele quarto, modesto, de casa de pescadores do Mindelo, olhando bem nos olhos aquela jovem e recebendo, em cheio, toda a força da pergunta: diga-me, quanto tempo me falta para morrer?

Alguns meses antes, numa biopsia do fémur direito, eu tinha feito um diagnóstico de sarcoma de Ewing e fora-lhe proposto amputar a perna direita por desarticulação coso femural.

Maria C. tinha 17 anos e a beleza longilínea e esquiva que marcava uma antiquíssima origem fenícia, tribalmente conservada nas famílias de pescadores de entre Lima e Mondego.

Começara a dançar no grupo folclórico e agora, quase a acabar o Liceu, sonhava ser bailarina, correr em pontas num palco iluminado, rodar como um esguio pião enlouquecido e cair, amparada, nos braços robustos do seu par.

É verdade. Maria C., naquele quarto modesto de uma casa humilde de pescadores, tinha um magnífico sonho de adolescente – ser bailarina.

De certo que ela não sabia porquê. Sabia só que uma força interior a fazia imaginar o seu corpo a mover-se ao sabor de um ritmo desconhecido mas intuído, oculto mas descoberto num recôndito pequeno espaçoda sua auto-consciência. Quero com isto dizer que Maria C. não exibia uma superficial escolha, extraída, de leve, dos meios de comunicação social e do seu oportunismo fácil, para a sedução dos jovens ainda permeáveis. Não. Maria C. vivia uma vocação, ancorada tão fundo no seu eu que ela não conhecia, sequer, as suas invisíveis raízes.

Dou comigo a pensar que esta escondida secreta origem da força que chamava aquele corpo para o ritmos e a dança, tem de resultar da articulação sucessiva da expressão das informações génicas com as quais se constrói um corpo humano. Outras informações génicas, expressam-se e constroem, por exemplo, um corpo que irá voar, como o corpo da ave que cruza os céus, desafiando a força da gravidade que a todos atrai para o solo.

O corpo do homem, esse, não voa. Mesmo quando se julga asa, na imaginação poética, é “asa que se elançou, mas não voou” (Mário de Sá Carneiro). Mas é o genoma que, ao responder, diferentemente, aos estímulos epigenéticos, logo desde que o corpo humano é uma ciência isolada, escondida nas dobras das franjas tubares de uma mulher, é o genoma, dizía, que constrói os corpos humanos, todos diferentes e, até, com psicologias diversas. O imortal Cervantes, interiorizou que um longilíneo asténico, é um sonhador triste, e um pícnico, bem arredondado, é pelo contrário, um pragmático bem disposto.

Um corpo, construído genéticamente para que nele se manifeste o desejo, inconsciente, de voar, sem asas perecíveis, como no subtíl mito helénico, mas antes em obdiência ao ritmo musical da dança, esse corpo estará a exprimir uma pura informação, que chegou por meio de uma qualquer via antiga, passada de geração em geração, usando uma “genética” ainda oculta aos nossos olhos científicos; informação que se revelava na dança ritual das jovens virgens que, Semitas, Gregos, Romanos, Celtas, celebravam em homenagem à Vida, ao Amor e à Morte. E que hoje é só a estética do movimento expressivo.

Não estará aqui o inconsciente de Jung? Penso que sim, mas não vou agora avançar mais neste argumento.

Maria C. tinha recebido um corpo assim, um corpo ligado ao ritmo, com uma estrutura neuro-muscular obdiente a uma secreta vontade de voar, de deslizar como se não tivesse peso e até, um dia de se debruçar sobre o solo, morta. Como um Cisne que não pode mais voar e, portanto, não pode mais viver.

Como conheci Maria C.?

Uma relação fortuíta e casual fez com que os Pais soubessem que tinha sido eu a fazer o diagnóstico e procuraram-me pedindo que fosse ver a filha e a convencesse a aceitar a amputação.

Como patologista vivi, muitas vezes, situações deste tipo, sempre de grande dificuldade e de pesada responsabilidade. Além do desconforto ético de ficar atravessado entre o médico que tratava o doente, de um lado, e o doente com os seus familiares, do outro.

Assim conheci Maria C.. Não acamada mas de aspecto saudável, queixando-se apenas de dores na perna que não a impediam de sair e conviver com os amigos da sua idade e do seu grupo de dança. E com o seu jovem namorado.

Pedi aos Pais que nos deixassem a sós e assegurei-a, logo, de que só queria ouvir o que tinha para me dizer, nada mais.

Com uma determminação serena disse-me que sabia que a doença daquela perna a podia matar mas que tudo o que sonhava fazer, enquanto pessoa viva, impunha o uso das duas pernas. Foi dura comigo: “sabe bem, doutor, que não poderei dançar com uma perna de pau”. “Não quero morrer”, concluíu, “aceito todos os tratamentos, mesmo os mais penosos, mas não aceito viver sem a minha perna”.

Não chorou. Apenas nos seus olhos perpassava a sombra de uma desilusão, antevendo, talvez, que mesmo conservando a perna, jamais realizar o sonho de dançar, o sonho que o seu corpo lhe exigia que cumprisse.

Fugi a detalhes técnicos e, tal como o seu médico assistente me tinha autorizado, disse-lhe que, uma vez que não consentia na amputação da perna, iria fazer radioterapia, abrindo para ela todo o leque dos efeitos secundários; mas Maria C. aceitou imediatamente.

Infelizmente sem resultado benéfico e com uma extensa radionecrose da pele da coxa. As pequenas e maléficas células do sarcoma de Ewing apareceram por todo o lado e Maria C. foi mandada para casa com a frase sacramental “já não há mais nada a fazer”.

Os Pais procuraram-me de novo, algum tempo depois. Pressnti no olhar da Mãe, que não falava, que me responsabilizava por a filha estar quase a morrer, já que não tinha conseguido convencê-la a deixar amputar a perna. O Pai, porém, pedia-me que a fosse ver a pretexto de aconselhar o tratamento da úlcera da coxa que era o que mais a incomodava.

Logo que entrei percebi que tinha sido Maria C. que manifestara a vontade de falar comigo.
A ferida estava feia e falamos da ferida algum tempo, enquanto mudava o penso e dava indicações à Mãe sobre os cuidados a ter.

Quando ficámos sós, depois de um longo silêncio de penosa expectativa, veio a pergunta directa mas serena: diga-me, quanto tempo me falta para morrer?

Não esperava esta pergunta, nem a serenidade com que foi feita. Apanhado de surpresa respondi assim:

- “Falta o tempo que tens para viver”.

E comecei a falar com palavras que me apareciam, vindas não sei de onde. E disse-lhe: “ a todos nós e não apenas a ti Maria C., o tempo que nos falta para morrer é o tempo que temos para nele viver, sem desperdiçar um segundo que seja. Não são as horas dos relógios mecânicos, nem é a sucessão dos dias e das noites, porque este planeta roda à volta da estrela que o ilumina, que fazem o nosso tempo, só o contam. Quem faz o nosso tempo é o fluir, na nossa autoconsciência, das doenças perceptivas do mundo externo, que os nossos sentidos nos oferecem em permanência, é a reflexão sobre os conteúdos que a memória apresenta na auto-consciência e é esta estranha contemplação das ideias abstractas que invento e da emoção com que as cubro, como se eu próprio fosse um outro.

Este tempo vivido não tem que ver com o tempo dos relógios que tu, Maria C., querias que eu quantificasse para ti quando perguntaste – “diga-me, quanto tempo me falta para morrer?”

Desse tempo de relógios e da sucessão dos dias e das noites, quanto te falta, não sei. Mas sei que te falta, como a todos nós, usar o tempo de viver que é a criação nossa e tem, por isso, uma dimensão infinita.

Enquanto, na tua auto-consciência, te vês a dançar o Cisne vives o teu tempo da dança que não é o tempo físico da partitura. O Cisne desliza, eleva-se, rodopia e tomba, no tempo da memória visual que não é síncrono com o da representação real, em palco. O tempo vivido, como temporalidade, expande o tempo físico e amplia o espaço real dos acontecimentos percepcionados e memorizados. O palco em que danças Maria C. é um espaço imenso e o tempo que vives, dançando sobre ele, é quase infinito.

Mas nem só de dança viverá o teu tempo de viver.

Como ser vivo tens um lugar e um tempo no mundo natural. E o mundo natural é muito belo, muito rico e muito presente à nossa volta.

Quando o tempo de cada um de nós está a extinguir-se a vinculação do corpo de cada um de nós ao mundo natural torna-se mais forte. É como se uma percepção extra-sensorial mais afinada e sensivel nos permitisse acolher as coisas e as pessoas à nossa volta numa nova e mais sensitiva auto-consciência. Este acolhimento é uma deferência para com a natureza que nos recebeu e apoiou com toda a generosidade: deu-nos o ar que respiramos, a água que bebemos, os alimentos que ingerimos, o calor e o frio, o sol e chuva e “os grandes ventos límpidos do mar”, como cantou Sophia.

Lembras-te Maria C., de quantas vezes olhaste “para o calor dos campos com a cara toda” (Pessoa) e te sentiste feliz, sem nenhum outro motivo para estares feliz além deste que era o de estares imersa na natureza como simples coisa natural?

Lembras, que eu sei. Pois lembra-te e vive, com intensidade, esses momentos mágicos de comunhão com o mundo real natural, em que o corpo não pesará e o espírito tomará conta de toda a tua auto-consciência enchendo-a de bem-estar de paz.

Falei assim, com temor. Maria C. percebeu mas nada disse.

Quando chegaram as Colegas com braçadas de flores silvestres, vi nos seus olhos, ao deixar o quarto, que as flores, mais do que as palavras das amigas, a estavam a levar para a memória dos passeios sem fim de tarde com o seu namorado, pelos campos floridos do Mindelo.
Visitei-a várias vezes até ao dia da sua morte.

Sempre a encontrei calma: e a Mãe dizia-me que ela estava muito sonhadora e que falava do mar e da praia como se estivesse, ali na cama, a olhar o pôr-do-sol.

E falava, até, em casar com o namorado que a visitava todos os dias e era rapaz de poucas falas, mas saudavelmente alegre.

Sempre a encontrei calma. Falando-me de coisas banais e da úlcera que doía e não fachava; o seu olhar, porém, dizia-me, sem dúvidas, que estva a viver o seu tempo, e à sua maneira.

Numa visita, que foi, afinal, a última, a Mãe disse-me que ela tinha pedido para ir ver o mar. E pedia-me que autorizasse essa ida que seria breve. Era outra vez Setembro, sem trubilhões de vento e com Sol já mais macio.

Ao ouvir o pedido, logo recordei o Senhor Manuel Campos, velho lavrador de Armamar, internado na minha Enfermaria de Patologia Médica do Hospital de anto António, com insuficiência cardíaca por aneurisma da aorta que lhe deformava o esterno e parecia prestes a rebentar.

Um dia, ao fim da manhã, pediu-me para mudar da cama para uma cadeira e ser levado até junto da janela. Não me disse porquê.

Assim se fez e ali esteve o Senhor Manuel por mais de uma hora, em silêncio, enquanto o trabalho na Enfermaria se desenrolava na rotina costumeira. Ninguém lhe deu atenção até que eu vi que a cabeça descaída indicava que estava morto.

O aneurisma não rebentou. Mas este homem do campi que, em toda a sua vida, tinha privado com a natureza – a poda das videiras no frígido Inverno, as sementeiras de Março, quando a terra parecia pedi-las, as colheitas do centeio, as vindimas e a festa da criação do vinho – este homem do campo quis despedir-se dessa natureza com a contemplação, amorosa e em silêncio, das poucas árvores da cerca do Hospital que podiam ser vistas da janela da Enfermaria.
Maria C. também se ia despedir. Do mar.

Morreu, serena, ao fim do dia em que os seus olhos, mais do que contemplarem, na auto-consciência, o mar, puderam vê-lo, uma última vez, em toda a sua grandiosidade natural.

“O mar, principalmente o mar, a metafísica do mar,
o seu embalo místico, na minha alma mística a uma hora mística,
talvez de noite, sem espasmos da lua para trnasfigurar-te,
ó meu simples desejo de mar!,
talvez de manhãzinha, brisa suave no espelho d’água,
primeiro barco, e qualquer coisa íntima se entreabre,
talvez na tarde morna, insípida, secular...”


Assim falou do mar a poetisa esquecida Maria da Encarnação Baptista nma obra única e solitária a que chamou “Hora Entendida.”

É, de facto, no entendimento da Hora, na vivência do tempo pessoal, que se absorve um sentido para a vida que cumpre e esgota o seu tempo.

Diga-me, quanto tempo me falta para morrer?

Faltava-te um ano, 365 dias; sei-o, agora, Maria C..

Mas quando escrevi a certidão do teu óbito, blasfemo e obscuro papel, no qual se pretende encerrar uma biografia, em vez de sarcoma Ewing e anemia arregenerativa eu quereria ter escrito, com causa de morte, assim:

Morreu porque, tendo consumido o seu tempo pessoal de viver por meio de um corpo orgânico, frágil e perecível, que regressou ao mundo natural, passou para uma outra existência, sem tempo cronológico nem espaço físico, onde as auto-consciências individuais se fundem na auto-consciência universal da qual tudo provém e à qual tudo retorna.

Para muitos de nós, será regressar a Deus. Mas Deus não pode ser nomeado por esta palavra que parece designar uma certa pessoa, à imagem das pessoas que conhecemos à nossa volta.
Sabemos, porém, desde Moisés, que a palavra Iavé designa uma qualidade, não uma pessoa. Para muitps Hebreus que testemunharam a vida e as palvras de um dos seus, que se apresentou como o meio de Iavé se tornar compreensível para a inteligência humana, Yeshua (Jesus na nossa grafia) encerrou a promessa de Iavé. Ao princípio Iavé era apenas a Palavra, o Verbo; com Yeshua passou a ser, também, o acto.

Cada um dos nossos corpos é, igualmente, acto.

Se honrarmos a promessa de amar os outros como a nós mesmos, passaremos de facto a ser Palavra. Eis porque Bento XVI afirmou, recentemente, que no amor pelo outro está a essência de Deus e a possibilidade de O conhecermos nesta forma de vida intra-mundana.

Com a Unidade de Dor, cujo 14º Aniversário hoje se comemora, o Dr. Lourença Marques deu provas do amor pelo outro que sofre.

E, ainda que não invoque nenhuma motivação transcendental, ao aliviar a dor do seu irmão sofredor. Do seu igual que precisa de ajuda, o Dr. Lourenço Marques entrou, em pleno, na relação humana de cuidado pelo outro que nenhuma neuro-ciência sabe explicar e só tem sentido no âmbito de uma visão transcendental da vida humana.

O crescimento da Unidade de Dor até um Serviço de Cuidado Paliativo foi uma evolução natural; porque fazer o bem tem de ter um suporte estrutural.
Mas que não se olvide que o essencial não é a tecnologia mas o exercício de uma actividae misteriosa: o mistério de um ser humano que acolhe, no seu afecto, comovido até às entranhas, outro ser humano que sofre e carece de ajuda.

Como lembra Délio Borges de Menezes na sua tese de Mestrado sobre a Parábola do Bom Samaritano, não foram os profissionais, como o Sacerdote ou o Levita quem usou de compaixão e cuidado com o desvalido, atacado e roubado pelos salteadores e caído semi-morto na beira da estrada; mas sim o estrangeiro, o samaritano.

No cuidado paliativo são osprofissionais que, como bons samaritanos, se debruçam sobre o outro, desvalido e sofredor, lhe cuidam as feridas com bálsamo do amor e os assistem numa estalagem com boas condições de acolhimento e permanência.

No cuidado paliativo ninguém perguntará como Maria C. “quanto tempo me falta morrer?” Mas dirá com perfeita consciência:
Como é bom viver todo este tempo que me é dado, até morrer.
DANIEL SERRÃO