Voltei de novo à Faculdade. Acredito que mais amadurecido na capacidade de escutar mas cansado na capacidade de absorver conhecimentos; amadurecido na capacidade de saborear o que de bom nos dá a vida mas sem a destreza de memória de antanho. No início surgiu-me uma inquietação: será que haverá alguma coisa para saborear neste voltar às aulas? Será que haverá muito para aprender? Já lá vão uns meses de aulas e penso que sim, e quanto já aprendi e quanto para aprender ainda! E isto percebi logo numas notas que tirei de uma das aulas: “ser professor é uma arte... tem de estar a tempo inteiro”.
“Estar a tempo inteiro” . Tal e qual as palavras que eu digo aos meus miúdos do teatro. Pequeno ou grande, na sonoplastia ou como ponto; nas luzes ou no cenário; actor principal ou secundário, o papel que cabe a cada um deve ser feito com o máximo de empenho e acreditar naquilo que estamos a fazer. “O que nos cabe fazer, deve ser realizado com critério e devoção”. “Não posso ser pedagogo por simples despacho ou portaria”.
E, gomo a gomo, qual criança a saborear a laranja, fui fazendo descobertas, reajustando crenças, aprofundando ideias, consolidando saberes ao longo destes meses do “regresso” à Faculdade. São coisas simples – “os melhores perfumes vêm em frascos pequeninos” – mas que se revelam de grande importância, que eu fui absorvendo e me foram deixando inquieto: “Aceitar é ouvir o que a outra pessoa tem para dizer.” Comunicar é como jogar a bola. Alguém tem de lançar a bola primeiro.
Resolvi jogar com os meus alunos o jogo da comunicação. Lancei a bola: Chamei cada aluno, faltavam dez minutos para terminar a aula, tendo em conta algum pormenor interessante que sabia deles e dei a cada um 10 segundos para dizerem qualquer coisa. Alguns não disseram mais do que um apenas está tudo bem. Outros, pouco mais disseram. Numa das turmas que fiz isto não consegui percorrer a turma toda e disse que ficava para a próxima aula e que começaria esse processo pelo fim da lista. Um dos alunos, que não tinha sido chamado, veio ter comigo e disse, se eu não me importasse, que gostava de dizer qualquer coisa se lhe desse os dez segundos. Dei-lhe a oportunidade de falar e ele apenas disse: o fim de semana correu-me mal. ... Peguei no desabafo dele e ficamos o resto do intervalo a conversar. Ganhei um amigo. Não há dúvida, a comunicação carece de aproximação.
Continuo a jogar com os alunos o jogo da comunicação. Para eles é o espaço em que cada um tem dez segundos para dizer o que quiser, e se quiser, no início das aulas. E por vezes não são necessárias palavras. Basta um gesto, um sorriso, um trocar de olhos para comunicar. Há dias o T., um aluno reservado e de pouquíssimas palavras, quando eu entrei na sala, sentado na sua carteira, olhou para mim e apontou para o seu cabelo. Pisquei-lhe o olho. Quando chegou a vez dos dez segundos do T, disse-lhe: “T., cortaste o cabelo! Ficas muito bem assim.” Ficou feliz. Pequenos gestos para os libertar e motivá-los para a comunicação
7 comentários:
Raul, aí está você outra vez, inteiro. Sabe, foi a dar formação sobre como atender o público (deu-me para isso, uma vez, fazer uma formação interna ao pessoal auxiliar de Acção Educativa, há muitos anos) que aprendi a importância do "Ouvir". Que não basta ter ouvidos para ouvir. Até atrás de um balcão, quanto mais à frente de um Aluno. Esse Aluno que lhe disse que a semana tinha corrido mal passou-lhe um atestado. Um Diploma. É desses Diplomas que nos devemos orgulhar, embora eles não fiquem registados no nossos CV's. Parabéns. Carmo
Li, reli o texto e reflecti em muitas coisas.
Apercebi-me que todos nós temos dúvidas, inquietações.A escola, a "faculadade"(hoje em dia já não sei)são necessárias, mas será que a melhor escola não será nalgumas circunstâncias a da vida!
Meu Deus, como aprendemos tantas coisas com os outros,e também lhes ensinamos, a comunicação, a partilha, os gestos, como são importantes...e depois "os melhores perfumes vêm em frascos
pequeninos".São sempre as coisas simples as mais gostosas, e como elas são precisas...
Amei o texto, palavras para quê!
Hoje gostei particularmente de passar por aqui e absorver as pequenas/grandes coisas ditas, as simples/complicadas verdades aqui escritas.
Quem assim escreve pensa com qualidade. Com a qualidade da autenticidade.
Movidos a toques de campainha falta-nos tantas vezes o tempo para “passar a bola”. Gosto de pensar as suas palavras.
Parabéns Raúl, gostei imenso deste teu texto! O que contas da tua longa experiência como professor é o que de melhor podes partilhar com os outros... o que dizes faz tanto sentido... muito mais do que quando leio alguns textos de outros autores que citas no teu Blog! O que contas são experiências... mas experiências com sentimento, porque, em tudo o que fazes colocas o que de melhor há em ti: a tua atenção, o teu carinho, a tua bondade...Bem, vou parar por aqui, mas se continuasse teria muitos mais adjectivos para enunciar!
Parabéns de novo... e para quem não te conhece como eu, basta o seguinte para endenderem o professor que és: quando perguntei ao teu filho quem é o professor mais simpático no colégio, ele respondeu-me: "o pai, claro!"
Querida Émy, sabes que és muito suspeita para fazeres estes comentários aqui, mas foi simpático da tua parte. Dá-se um desconto de 50% e aceita-se.
E querias que o nosso filho dissesse outra coisa que não o que disse? Não o deixava entrar em casa!
Eu quando cito outras pessoas ou autores é porque tenho muito respeito por eles e porque me dizem alguma coisa; porque me ensinam alguma coisa.
A sala de aula não pode ser um enfeudamento de saberes ou de conteúdos curriculares. É o local privilegiado do crescimento dos afectos, do desenvolvimento dos valores, da elevação do humano.
Subestima-se a comunicação não verbal porque resiste às grelhas e estrilhaça qualquer instrumento de registo. É pena.
Somos uma totalidade de razões, des-razões, de afectos e desafectos.
Apreciei a sua sensibilidade e o facto de não a ocultar.
Uma escola desumanizada é o "cárcere da alma". (Adaptação minha da célebre frase de Platão).
Elsa Cerqueira
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